Lugares também contam histórias – e constroem experiências
Escrito por
Leandro Duarte | Sócio da Nuts • Designer de Experiências • Mestre em Comunicação
Precisamos compreender e trabalhar conscientemente com o poder do espaço físico na criação
Nos anos 1960, boa parte do mundo acadêmico procurava dimensionar o impacto dos meios de comunicação na maneira como as pessoas se relacionavam consigo mesmas e com o mundo à sua volta. Naquela época, em que a TV vivia sua era de ouro, a maioria dos estudiosos se concentrava em examinar o conteúdo do que era transmitido.
Foi então que o canadense Marshall McLuhan alugou um triplex na cabeça de muita gente, com uma frase aparentemente simples, mas profundamente provocativa: “O meio é a mensagem”. Para ele, a forma como uma mensagem é transmitida carrega tanto – ou mais – sentido quanto seu próprio conteúdo.
À primeira vista, toda essa discussão sobre meios de comunicação pode parecer distante do mundo do design de experiências, que é o que nos interessa aqui. A questão é que o insight de McLuhan também é bastante útil para nós: se os meios carregam mensagens implícitas em sua própria natureza, o mesmo pode ser dito sobre os espaços físicos que ocupamos e projetamos, posto que também são meios.
Ou seja, o espaço com o qual interagimos não é apenas um cenário: ele é um elemento constitutivo da experiência. Ambientes também contam histórias.
Em outras palavras: o lugar é parte significativa da experiência.
Pense em como um mesmo evento pode ganhar significados radicalmente diferentes dependendo do local onde acontece. Uma conferência sobre inovação realizada em um teatro histórico restaurado transmite uma mensagem muito diferente do mesmo encontro feito em um centro de convenções com paredes de vidro.
O teatro histórico pode evocar uma conexão com tradição e permanência, enquanto o espaço contemporâneo sugere ruptura e futuro.
Não por acaso, Tricia Austin, uma das principais pensadoras contemporâneas na área de experiências, desenvolveu o conceito de “ambiente narrativo”. A ideia, apresentada no livro Narrative Environments and Experience Design: Space as a Medium of Communication (2020), tem entrado no radar de quem se propõe a pensar e promover experiências significativas.
E vou te explicar o porquê.
Pessoas, narrativa e… ambiente
Austin nos lembra de que, para criar experiências de fato extraordinárias, precisamos pensar no espaço como uma jornada sensorial completa. Como o ambiente se revela gradualmente para quem chega? Quais são os momentos de surpresa e contemplação? Como o espaço dialoga com seu entorno e com sua própria história?
Um bom design de experiência considera não apenas o que acontece no espaço, mas como o próprio espaço participa ativamente dos acontecimentos.
A pesquisadora argumenta que a verdadeira força dos ambientes narrativos nasce da interação entre três elementos fundamentais: Pessoas, Narrativa e Ambiente, como no tripé abaixo.
A teoria de Austin chama atenção para os comportamentos, rituais e hábitos que as pessoas desenvolvem naturalmente quando estão juntas em um espaço. Ela considera que as práticas e experiências humanas:
- Estão sempre localizadas no tempo e no espaço
- Dependem da interação entre os três elementos (Pessoas, Narrativa e Ambiente)
- São concretas e observáveis
- Podem ser estudadas e analisadas
- Geram novos significados e possibilidades
A autora destaca que não podemos entender um ambiente narrativo sem levar em conta o tal tripé. O que isso nos ensina sobre design de experiências? Muita coisa:
- Precisamos considerar todos os três elementos desde o início do processo
- O design deve ser flexível para acomodar diferentes formas de interação
- As práticas sociais (comportamentos, rituais e hábitos) devem ser antecipadas, mas não rigidamente determinadas
- A narrativa deve se construir organicamente, a partir da interação entre pessoas e ambiente
- O ambiente deve abraçar múltiplas possibilidades de uso e interpretação
Na prática
No mundo corporativo, empresas como Google e Apple criaram sedes que são verdadeiros manifestos tridimensionais de suas culturas e valores. Cada elemento do design, desde a disposição dos espaços de trabalho até a escolha dos materiais, reforça mensagens sobre inovação, colaboração e visão de futuro.
São espaços que não apenas abrigam trabalho, mas ativamente moldam como as pessoas trabalham e interagem.
Da mesma forma, os eventos também podem (e devem) aproveitar esse poder transformador do espaço. E foi isso que fizemos quando escolhemos, por exemplo, o Domo Digital como sede do Festival From Control to Culture 2024, que a Nuts realizou em parceria com a nōvi. Foi uma decisão que materializou o tema “Até onde a imaginação radical pode levar a aprendizagem organizacional?”. O planetário – com sua arquitetura esférica, sua capacidade de projeção imersiva e até mesmo sua localização no centro de São Paulo – criou um ambiente que já é, em si mesmo, um convite à expansão de horizontes.
Além disso, a experiência física de estar em um planetário amplifica a mensagem central do festival de várias maneiras: assim como usamos este espaço para ampliar nossa compreensão do universo, o festival convidava os participantes a expandirem sua imaginação sobre o que é possível nas organizações.
O deslocamento físico do ambiente corporativo tradicional para um espaço de descoberta e contemplação, somado à experiência imersiva compartilhada, cria exatamente o tipo de desconforto produtivo e suspensão da realidade necessários para imaginar futuros radicalmente diferentes.
É um exemplo perfeito de como um espaço pode ser não apenas um cenário, mas um participante ativo na construção de significado e transformação.
Neste ano, ao construir a experiência da Convenção de Líderes da Lojas Renner S.A., também nos desafiamos a tornar o espaço ainda mais protagonista na história que queríamos contar.
O tema do encontro foi “Coragem” – um comportamento-chave para a empresa – e a programação se desdobrou em três locais diferentes: começamos a jornada na primeira loja da Renner, no centro de Porto Alegre, que ainda funciona e teve todo um andar de araras e provadores transformado em plenária; desenvolvemos diversas atividades na própria sede administrativa da empresa, onde o estacionamento se transformou em um salão dramático para um jantar às cegas, com direito a performance artística, e os jardins receberam diversas ativações de desafios de aventura; e, por fim, encerramos a experiência com um desfile em um antigo galpão desativado às margens do Guaíba, em frente à histórica estrutura das Caldeiras, onde, na década de 1920, funcionou a primeira fábrica do grupo.
Esse lugar carrega sua própria história de resiliência. Severamente abalado pelas enchentes que atingiram Porto Alegre no início deste ano, suas paredes mostram as marcas da altura que a água alcançou, os traços da lama ainda visíveis. E, em meio a essa história, construímos uma narrativa de recuperação e renascimento. O desfile se desenrolou em paletas de cores cada vez mais vivas, simbolizando a coragem de se reerguer, de se reinventar e de recomeçar.
Um lugar não é apenas um cenário
McLuhan nos ensinou a ver além do conteúdo explícito para compreender como o meio molda a mensagem. Da mesma forma, ao pensarmos em experiências memoráveis, precisamos ver além da programação e da logística. O espaço físico não é apenas um palco, um observador neutro – ele é um narrador, um personagem essencial na história que queremos contar.
Quando reconhecemos e trabalhamos conscientemente com essa dimensão, podemos criar momentos que não apenas acontecem em um lugar, mas que são fundamentalmente ressignificados, enriquecidos e transformados por ele.
Em um mundo cada vez mais digital, é mais importante do que nunca compreender e trabalhar conscientemente com o poder do espaço físico na criação de experiências significativas, memoráveis e extraordinárias.